A ameaça terrorista, ontem e hoje

Ana Flávia Velloso.

Tenho certeza de que o leitor se lembra do que fazia quando soube dos atentados às torres gêmeas. O caráter impactante daquela notícia fez com que os fatos se congelassem na nossa memória. E parece que tudo aconteceu ontem.

A tragédia, o choque, a perplexidade, a reação. Tudo tão próximo no tempo. Parece que foi ontem que o Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizou os bombardeios no Afeganistão, à luz do Artigo 51 da Carta das Nações Unidas. Parece também ter ocorrido ontem o debate sobre o caráter inédito da decisão que, interpretando de forma extensiva a Carta, considerava um ato terrorista como “ataque armado” a ensejar a aplicação do princípio da legítima defesa. Era a primeira vez que se entendia o emprego unilateral da força como reação lícita para repelir não uma violência perpetrada por Estado soberano, mas a agressão sem rosto e sem bandeira que caracteriza o crime de terrorismo.

Parece que foi ontem a controvertida guerra contra o “eixo do mal” e a dicotomia que se instaurou entre liberdades individuais e segurança internacional. Ainda ecoam em nossa memória as vozes avisadas que advertiam sobre o caráter nocivo da erosão do patrimônio de garantias da pessoa humana. Como parece recente a angústia dos que lamentavam que à “era dos direitos” se substituísse a “era do medo”, marcada pela traição a princípios em nome da luta contra o terrorismo.

Passada mais de uma década, morto o ícone da Al Qaeda em uma ação espetacular, o monstro parecia debelado. E eis que, como em filmes de animação, a fera vencida ressurge das cinzas, mais feroz e assustadora. Do Estado Islâmico, a facção radical sucessora da trilha de horrores inaugurada pela Al Qaeda, não se conhece muita coisa além dos ideais obscurantistas e da metodologia violenta.

A Al Qaeda veiculava posições de matizes políticos mais claros, e o aspecto confessional da organização parecia quase acessório. Sob a liderança de Bin Laden amontoavam-se combatentes de inspirações diversas. Radicais islâmicos se associavam a fanáticos de causas políticas: verdadeira colcha de retalhos, autêntico amálgama de motivações variadas, era mais fácil capturar a lógica daquela organização do que a dos jihadistas do Estado Islâmico. Os militantes de hoje se apropriam mais do discurso religioso, repercutindo uma “guerra santa” que os muçulmanos esclarecidos qualificam como distorção dos dogmas do Islã. A entidade que se proclama Estado, ignorando noções de fronteira, recruta jovens ingênuos com indecifrável dom de sedução e recursos de proveniência misteriosa.

A controvérsia sobre a idoneidade dos meios escolhidos contra o terrorismo– emprego da força, ocupação estrangeira, violação dos direitos humanos – parece que se travou ontem, mas já está obsoleta. É impossível não ver que a guerra ao terror, tal como empreendida pela maior potência democrática do planeta, além de desleal a valores intrínsecos àquela república, revelou-se ineficaz.

É alarmante constatar que, em vez da autocrítica, da reavaliação dos métodos de ontem, o que se elege agora é a retomada do mesmo caminho. A sequência se repete: bombardeios, desastres humanitários, o combate de fim incerto, os resultados duvidosos.

Por trás de tudo isso subsiste uma cultura institucional e suas crenças absolutas. A mais óbvia delas é a obsessão por se mostrar no controle das condições adversas. Esta atitude não se circunscreve ao domínio estatal, mas permeia a consciência de uma sociedade que espera do seu governo ostentação de força e emprego de arsenal bélico. Isso justifica, talvez, a surpreendente semelhança na conduta de personagens tão antagônicos como o Bush de ontem e o Barak Obama de hoje.

Não é tão fácil encontrar a saída desse labirinto. O êxito em neutralizar terroristas por meio de intervenções armadas parece improvável. Esses combatentes, num processo de evolução às avessas, tornaram-se ainda mais primitivos, mais cruéis e eficazes na propagação do medo. A sociedade internacional, por sua vez, não apresentou progressos verdadeiros na luta pela erradicação do fenômeno terrorista.

O que se concebeu, por exemplo, como reforma na Carta de São Francisco, desde 11 de setembro de 2001, quando ficou evidenciada a insuficiência de seus termos face às novas ameaças mundiais? Que discussões se travaram no âmbito das Nações Unidas ao longo desse tempo na tentativa de compreender as causas profundas do terrorismo? Pouco foi feito para deter esse câncer, além do recrudescimento constrangedor da vigilância nos aeroportos, dos excessos e tropelias na espionagem internacional, da truculência no tratamento dos suspeitos – tantas vezes inocentes. É duro admitir, mas permitiu-se que o tumor maligno sofresse mutações e metástases. O “Estado Islâmico” é apenas uma delas.

Enquanto certos países tentavam agir como justiceiros e a ONU cochilava, o inimigo se reinventou. Uma guerra inglória se anuncia no horizonte próximo. Mas o processo de se tornar refém das próprias decisões não teve início ontem, e sim há treze anos. Por isso é hoje tão difícil ter uma ideia melhor.

Publicado na Revista JURÍDICA CONSULEX, número 431, janeiro de 2015