A Extradição de Henrique Pizzolato
Sobre a extradição de Henrique Pizzolato para o Brasil, no primeiro momento a opinião dos juristas brasileiros foi a de que seria inviável a concessão da medida pelo governo italiano. É que Pizzolato, preso na Itália após operação conjunta das polícias brasileira, italiana e internacional, dispõe também da nacionalidade daquele país. A Itália, como tantos outros países, não costuma extraditar seus próprios nacionais.
Não faltaram alusões ao episódio da fuga de Salvatore Cacciola, cuja extradição, negada pela Itália, só foi possível quando o banqueiro, que havia fugido do Brasil, voluntariamente deixou o território da república da qual tinha nacionalidade originária e ingressou no território de Mônaco. Então, mediante pedido formulado com promessa de reciprocidade, o governo brasileiro obteve do principado a entrega daquele que deveria responder aqui a processos penais.
A associação entre os casos Cacciola e Pizzolato é inevitável. Exame, entretanto, das circunstâncias de cada um, revela nuances que podem ser decisivas. Salvatore Cacciola nasceu em Milão, de pais italianos, vindo a radicar-se mais tarde no Brasil, onde desenvolveu suas atividades na iniciativa privada. Já Henrique Pizzolato nasceu no Brasil, onde sempre viveu, ingressando aqui na vida política partidária que o aquinhoou com cargo de diretor da mais antiga e importante casa bancária do país.
Do ponto de vista formal, Cacciola e Pizzolato têm a nacionalidade italiana pelo critério genético que a doutrina denomina de jus sanguinis. Cabe indagar, entretanto, se os dois vínculos produzem idênticos efeitos, ou se o ordenamento jurídico italiano levaria em conta o papel acessório que desempenhou, ao longo da vida, a segunda nacionalidade reconhecida a quem veio a ser um influente homem público brasileiro.
Salvatore Cacciola teve embaraços com a justiça local. Foi preso e, na primeira oportunidade, fugiu para a Itália. Henrique Pizzolato começou a articular sua saída do Brasil no momento em que o STF recebeu a denúncia que culminaria, após quase sete anos, na sua condenação. O plano seguiu detalhes meticulosos. Enquanto respondia ao processo penal, pouco confiante na própria absolvição, Pizzolato providenciou o título de eleitor do irmão morto para obter mais tarde o passaporte falso.
Seria importante apurar se a nacionalidade italiana foi mesmo solicitada e reconhecida depois dos fatos criminosos, como alguns veículos noticiaram. Neste caso, ficaria claro o objetivo de valer-se dela na execução do projeto de fuga. Em iguais circunstâncias, invertido o quadro, mesmo a Constituição do Brasil permite a extradição do brasileiro naturalizado. Mas ainda que assim não tenha sido, é de ver que ele sempre contou com o abrigo deste elo político-jurídico alternativo. Não seria extravagante concluir que o vínculo com o Estado italiano teve, na trajetória de Henrique Pizzolato, essa única serventia.
A República Italiana poderia inspirar sua reflexão na célebre jurisprudência da Corte Internacional de Justiça no caso Nottebohm. Filho de alemães, radicado na Guatemala, Friedrich Nottebohm enfrentou o risco de seu patrimônio sofrer danos decorrentes de atos praticados pelo Estado guatemalteco. Era o ano de 1939, e eclodia na Europa a segunda grande guerra. Por esta razão não seria possível solicitar a seu país de origem a chamada proteção diplomática.
Nottebohm viajou ao Liechtenstein e, mesmo sem qualquer vínculo social com aquele país, obteve a respectiva nacionalidade. Anos mais tarde, o Liechtenstein cobrou reparação da República da Guatemala pelo dano supostamente injusto causado a seu nacional. A Corte da Haia, com propriedade, lembrou que o reconhecimento de nacionais é atributo soberano de todo Estado. Mas a produção de efeitos jurídicos perante a ordem internacional reclama vínculo mais sólido entre o individuo e o Estado que o recebe como integrante de seu povo. Nascia então o conceito de nacionalidade efetiva, fundada em laços sociais consistentes, que aqui, ainda que para fins diversos, caberia invocar.
Os juristas que supõem intransponível o obstáculo da nacionalidade para a extradição de Henrique Pizzolato certamente evocam a Constituição do nosso país, que proíbe a extradição de brasileiros natos (art. 5º,LI). A vedação aparece mitigada na Lei maior italiana. Ensina Carmem Tibúrcio que a Constituição italiana, “em seu art. 26, estabelece uma proibição de extradição de nacionais salvo se prevista em tratados internacionais firmados pela Itália”[1]. Há, portanto, certa margem de discricionariedade resultante até mesmo do fato de que a disciplina da nacionalidade, na Itália, como na França e em outros países, confina-se na legislação ordinária. O tratado entre Brasil e Itália, por sua vez, apenas autoriza a recusa da extradição com base na nacionalidade, mas não contém nenhuma regra que impeça a entrega de nacionais.
O crime de falsificação cometido por Henrique Pizzolato, este não seria impedimento para a extradição caso fosse o Brasil o Estado requerido, como não foi para Cesare Battisti, que entrou no Brasil com passaporte falso e teve sua extradição deferida pelo STF. O que veio depois não vale a pena mencionar. Mas o fato é que o Estatuto do Estrangeiro autoriza a renúncia ao processo pelo crime menor em favor do Estado requerente da extradição por crimes bem mais graves. Resta saber o que a legislação italiana estabelece a este respeito.
O Ministro Marco Aurélio bem figurou o próximo passo dessa coreografia jurídica. “Com a palavra, a Itália”, ele disse, esclarecendo que cabe a esse Estado a decisão final e sugerindo que o desfecho é imprevisível. Seria uma boa ocasião para que o Estado italiano examinasse as consequências do vínculo que tão generosamente reconhece a seus oriundi presentes em todo o mundo. Se a nacionalidade de cortesia se converte em nacionalidade de conveniência, existe o risco de se transformar o território de uma exemplar democracia europeia em valhacouto de delinquentes que, de improviso e por motivação nada edificante, passam a brandir o pavilhão tricolor.
Com a palavra, a Itália.
[1] Artigo publicado em 10/2/2014, no site Migalhas.