As forças armadas, sua missão maior

Carlos Mário da Silva Velloso*

As Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer deles, da lei e da ordem (CF, art. 142). “Constituem, assim, elemento fundamental da organização coercitiva a serviço do Direito e da paz social,” leciona José Afonso da Silva, acrescentando que esta, a paz social, “nelas repousa pela afirmação da ordem na órbita interna e do prestígio estatal na sociedade das nações.”[1]

O professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho conceitua as Forças Armadas como “um corpo especial da administração, oposto ao setor civil por sua militarização, isto é, pelo enquadramento hierarquizado de seus membros em unidades e preparada para combate”, assim o braço armado da administração pública, destinando-se, “em primeiro lugar a garantir a segurança externa do Estado,” sendo essa “a sua finalidade precípua, a razão por que em suas mãos se concentram armas e artifícios cujo emprego só se justifica contra quem possa contar com semelhantes, de ordinário, forças armadas estrangeiras.”[2]

Essa é a regra adotada em países civilizados, como, por exemplo, na França, onde “a defesa das fronteiras nacionais” constitui a missão central das Forças Armadas e, “como garantidoras da defesa nacional, a armée française conta com forças nucleares submarinas e aeroportuárias, instituídas por Charles de Gaulle, atuando na proteção dos chamadosinteresses vitais” do país, a serem definidos pelo Presidente da República”, e também “em missões de observação espacial, serviços de inteligência, manutenção das forças preposicionadas, contando com a ajuda dos Estados aliados no diálogo estratégico, na troca de informação e assistência de cooperação militar.”[3]

No Brasil, entretanto, a defesa externa “não é a única finalidade” das Forças Armadas. “Secundariamente, visam elas a assegurar a ordem interna. Secundariamente porque essa tarefa cabe em primeiro lugar às polícias, seja a civil, sejam as militares, se existirem. Se, porém, como sucede na guerra civil, os meios destas não bastarem para restabelecer-se a ordem, cabe às Forças Armadas impô-la”, conforme “exprime solenemente a Constituição,” art. 142, “As Forças Armadas, …destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Manoel Gonçalves acrescenta que, “na ordem constitucional, o caráter subordinado e executivo das Forças Armadas não faz dúvida. Todavia, no mundo contemporâneo, sua importância é capital.” E nesse sentido, preparando-se para o combate, para a guerra – se vis pacem para bellum (se queres a paz, prepara-te para a guerra) — cresce de importância as Forças Armadas como garantidoras da soberania do país, sob o ponto de vista externo, presente, entretanto, que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da solução pacífica dos conflitos (CF, art. 4º, VII).

Assentado o “caráter subordinado e executivo das Forças Armadas”, como deflui da Constituição e assinala Ferreira Filho,[4] convém afastar a visão que as concebe como “poder moderador”, concepção que não “seria possível, se as Forças Armadas são definidas no artigo 142 como instituições organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do presidente da República e essencialmente obediente? Poder moderador é poder independente em face dos demais poderes, e, para tanto não pode ser obediente nem sujeito a autoridade de qualquer deles.”[5]

Ademais, o controle das Forças Armadas, num Estado democrático, é do poder civil, como, por exemplo, nos Estados Unidos, onde, tal como aqui, “seu maior dever de lealdade é à Constituição,” conforme acentuou o Secretário de Defesa dos Estados Unidos, o general aposentado do Exército norte-americano, Lloyd Austin, durante conferência entre autoridades de Defesa das Américas, ocorrida no Brasil, em julho de 2022, que ressaltou que “a dissuasão crível exige Forças Armadas e forças de segurança que estejam preparadas, capacitadas e sob firme controle civil”, lembrando, “ao fim, que a segurança é fortalecida com o aprofundamento da democracia”, palavras que coincidem com “aquelas proclamadas pelo Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos, general Mark Milley, em novembro de 2020, quando o país vivia momentos de tensão política.”[6]

E poder moderador, vale enfatizar, há de estar expressamente previsto na Lei Maior e expressamente constituído como poder. Poder moderador, como tal, tivemos somente no Império, sob o pálio da Constituição de 1824, artigo 98, que dispunha:

“Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos.”

O Imperador, estabelecia mais a Constituição Imperial, art. 99, era a autoridade suprema, inviolável e sagrada, não sujeita a responsabilidade alguma. E parece que o Imperador teria a intenção de fazer do então Supremo Tribunal de Justiça, que foi sucedido pelo Supremo Tribunal Federal, um tribunal semelhante à Suprema Corte norte-americana. Revela a notável historiadora do Supremo, Lêda Boechat Rodrigues, que, “em julho de 1889, indo Salvador de Mendonça, acompanhado de Lafayette Rodrigues Pereira, despedir-se de D. Pedro II, a fim de cumprir missão oficial nos Estados Unidos, ouviu do Imperador as seguintes palavras: “Estudem com todo o cuidado a organização do Supremo Tribunal de Justiça de Washington. Creio que nas funções da Corte Suprema está o segredo do bom funcionamento da Constituição norte-americana. Quando voltarem, haveremos de ter uma conferência a esse respeito. Entre nós as coisas não vão bem, e parece-me que se pudéssemos criar aqui um tribunal igual ao norte-americano, e transferir para ele as atribuições do Poder Moderador da nossa Constituição, ficaria melhor. Deem toda a atenção a esse ponto.”[7]

Salvador de Mendonça e Lafayette Rodrigues Pereira não tiveram tempo de trazer ao Imperador as suas observações, dado que, a 15 de novembro do mesmo ano, a República foi proclamada.

As Constituições republicanas, a partir da Constituição de 1891, não cuidam de poder moderador. Consagrando a supremacia da Constituição, a Carta Política de 1891 estabeleceu a repartição de poderes, três poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – independentes e harmônicos, e adotou, como corolário da supremacia constitucional, o controle de constitucionalidade, segundo o modelo instituído pela Suprema Corte americana no famoso caso Marbury vs. Madison, de 1803, lecionando Christian Lynch a ocorrência da substituição do poder moderador pela jurisdição constitucional, com a função de arbitrar os conflitos políticos e de zelar pela observância da Constituição.[8]

De fato, o Judiciário, de modo especial o Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição constitucional, zelando pela supremacia da Constituição, exercita, principalmente no controle concentrado, inaugurado no Brasil com a Emenda Const. 16, de 1965, mecanismo de freios e contrapesos. Nessa operação, ao declarar a inconstitucionalidade de atos do Executivo ou do Legislativo, parece estar intervindo noutro poder. Mas não é bem isto. Está o Judiciário, no ponto, simplesmente dando cumprimento à Constituição, já que lhe cabe, por expressa disposição constitucional, a missão precípua de ser o seu guardião maior (CF, art. 102).

Na verdade, situações de conflito entre os poderes do Estado encontram solução no sistema dos checks and balances inaugurado pela Constituição norte-americana de 1787 e explanado com lucidez por James Madison, nos artigos federalistas, nº 51. Os freios e contrapesos foram adotados pelo constitucionalismo brasileiro a partir da Constituição republicana de 1891, que, fazendo mais, substituiu o poder moderador, como vimos linhas atrás, pela separação dos poderes, no sentido de que os poderes do Estado são independentes e harmônicos e instituiu o controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Executivo.

Em situações de crise aguda, a Constituição oferece modo de superá-la, até com medidas extremas, os institutos do estado de sítio, do estado de defesa e a intervenção federal, regulados, constitucionalmente, às inteiras: art. 136 (estado de defesa), artigos 137 a 139 (estado de sítio), artigos 34 a 36 (intervenção federal).[9]

Concluindo, afirmar que as Forças Armadas, braço armado da administração pública federal, assim órgão do Executivo, subordinado ao Presidente da República, poderia intervir nos Poderes Legislativo e Judiciário, em nome da garantia da lei e da ordem, que tem sentido diverso, teríamos ofensa ao disposto no próprio art. 142 da Constituição, seguindo-se ofensa à separação dos poderes, cláusula pétrea inscrita no art. 2º da Constituição Federal (CF, art. 60, § 4º, IV), com o estabelecimento do presidente da República, chefe das Forças Armadas, como intérprete maior da Constituição, ao arrepio do disposto no art. 102 da Carta Política.

* Advogado. Ministro aposentado, ex-presidente do STF e do TSE. Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e da PUC-MG. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e da Academia Mineira de Letras.
Agradeço à professora Ana Flávia Velloso, mestra em Direito Internacional pela Universidade de Paris, Sorbonne, a magnífica pesquisa realizada a respeito das Forças Armadas na França e nos Estados Unidos. 
[1] Silva, José Afonso da, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros, S. Paulo, 19ª edição, 2001, p. 11.
[2] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, “Curso de Direito Constitucional”, Saraiva, S. Paulo, 33ª edição, 2007, pp. 240-241.
[3] Holeindre, Jean-Vincent, “Le rôle de l’armée en France”, em “Cahier Français, julho-agosto, 2022, pp. 17-24.
[4] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, ob. e loc. citados.
[5] Silva, José Afonso, entrevista à Folha de S. Paulo de O4.09.2022.
[6] https://noticias.uol.com.br/ultimas-notícias/reuters/2022/07/26/no-brasil-secretário-de-defesa-dos-eua-diz-que-militares-devem-estar-sob-contole-civil.htmhttps:/www.poder360.com.br/internacional/não-fazemos-juramento-a-individuos-diz-autoridade-militar-dos-eua/
[7] Rodrigues, Lêda Boechat, “História do Supremo Tribunal Federal”, Editora Civilização Brasileira, Rio, 1965, v. I, p. 7. Velloso, Carlos Mário da Silva, “O Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional – uma proposta que visa a tornar efetiva a sua missão precípua de guarda da Constituição”, palestra proferida em 16.10.92, no Seminário de Direito Constitucional com vistas à reforma constitucional, promovido pelo Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Rev. Dir. Adm., abril/junho-1993, pp. 1-28.
[8] Linch, Christian Edward Cyril, “O caminho para Whashington passa por Buenos Aires”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, nº 78, fev.2012, apud Scaletsky, Felipe Santa Cruz Oliveira, Coêlho, Marcus Vinicius Furtado e Binenbojm, Gustavo, “Inconstitucionalidade das propostas de intervenção militar constitucional. Forças Armadas não exercem papel de poder moderador”, Rev. de Direito Administrativo, Rio, v. 280, nº 1, jan/abr. 2021, pp. 235-248.
[9] Scaletsky, Felipe Santa Cruz Oliveira, Coêlho, Marcus Vinicius Furtado, Binebojm, Gustavo, ob. cit.