Confusão entre admissibilidade e mérito de recursos extraordinários

Por Carlos Mário Velloso Filho

Até o ano de 2003, o Supremo Tribunal Federal só conhecia do recurso extraordinário interposto pela letra a, do inciso III, do artigo 102 da CF, se considerasse procedente a alegação de ofensa à Constituição deduzida pelo recorrente. Levava a corte às últimas consequências a interpretação literal do dispositivo constitucional que, de fato, diz que o recurso será cabível quando a decisão recorrida ofender a Constituição (não quando simplesmente a ofensa for alegada). Coerentemente, quando conhecia do recurso pela letra a, necessariamente o provia.

Essa diretriz, contudo, era insistentemente criticada por José Carlos Barbosa Moreira. Para esse jurista, inobstante a imprópria redação da alínea a, o STF, ao interpretá-la conforme os princípios de direito processual, deveria separar os juízos de conhecimento e provimento do recurso. Para admissão do extraordrinário, bastaria que o recorrente tivesse alegado a violação à Carta. No juízo de provimento é que se indagaria acerca da procedência da alegação. Constatada a contrariedade à Constituição, o recurso seria provido. Caso contrário, seria ele desprovido[1].

Em apoio à sua doutrina, Barbosa Moreira apontava alguns paradoxos a que conduzia a orientação jurisprudencial da Corte Suprema. O primeiro: tecnicamente, se uma corte não conhece de um recurso, o seu acórdão não substitui a decisão atacada, o que torna competente para a rescisória o tribunal recorrido. Assim, para afirmar a sua competência para julgar a rescisória quando não havia conhecido do extraordinário por ter como correto, no mérito, o decisum impugnado, o Supremo teve que editar a Súmula 249, onde se lê ser “competente o Supremo Tribunal Federal para a ação rescisória quando, embora não tendo conhecido do recurso extraordinário ou havendo negado provimento ao agravo, tiver apreciado a questão federal controvertida”. O segundo: quando um tribunal não conhece do recurso principal não pode conhecer do adesivo. Desse modo, para não prejudicar o recorrente adesivo quando o recurso principal deixava de ser conhecido por razão de mérito, o STF viu-se obrigado a fazer a distinção entre o não conhecimento por motivo processual e o não conhecimento por motivo de mérito[2].

Nelson Luiz Pinto também manifestava discordância com essa confusão entre admissibilidade e mérito. Segundo ele, entretanto, para que o recurso pudesse ser admitido na origem ou conhecido pelo STF, seria necessário que a alegação de violação constitucional fosse razoável. Deveria ser feito, destarte, um juízo de plausibilidade da alegação, semelhante à verificação do fumus boni iuris das cautelares[3].

Na tarde do dia 6 de agosto de 2003, o Supremo, por sua composição plenária, se curvaria à crítica de Barbosa Moreira[4]. Liderado pelo relator do RE 298.694 (ministro Sepúlveda Pertence), a Suprema Corte deliberou por separar os juízos de admissibilidade e de mérito[5]. A partir dali, o STF alteraria a técnica de julgamento dos recursos extraordinários. Preenchidos os requisitos recursais gerais (tempestividade e sucumbência), presente a alegação de ofensa à Constituição e superados os óbices sumulares (prequestionamento, vedação à reapreciação dos fatos da causa, etc.), o recurso seria conhecido (hoje, por óbvio, deve-se acrescentar aos requisitos de admissibilidade o reconhecimento da repercussão geral da questão constitucional). O exame de procedência ou de improcedência da alegação de violação constitucional seria deixado para a fase seguinte, referente ao juízo de provimento.

Deve-se notar, todavia, que, no ponto, a cessão à crítica de Barbosa Moreira foi apenas parcial. Com coerência, esse doutrinador sustenta ser vedado não só ao STF, mas também a quem exerce o juízo primeiro de admissibilidade do recurso (o presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido) proceder ao exame da procedência da alegação de ofensa à Constituição[6].

O Supremo, no entanto, continua permitindo que os tribunais recorridos, por seus presidentes ou vice-presidentes, ao exercer o juízo primeiro de admissibilidade do recurso, verifiquem se existente a violação constitucional invocada para, em seguida, dar ou não trânsito ao extraordinário[7]. Negando provimento aos agravos interpostos contra essas decisões, o STF vem mantendo a inadmissão dos extraordinários por motivos de mérito, o que revela estarem vivos os problemas relativos à prejudicialidade do recurso adesivo e à competência para a ação rescisória, apontados por Barbosa Moreira. O que se observa, portanto, é que a alteração jurisprudencial valeu apenas para fins de técnica de julgamento colegiado, tudo levando a crer que, para a Suprema Corte, o requisito de admissibilidade do RE (fundado na letra a) continua sendo a efetiva ofensa à Constituição, não a sua simples alegação.

Seria recomendável que, inspirado pelos ventos de mudança trazidos pelo novo Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal Federal terminasse o que começou em 2003, eliminando a possibilidade de os tribunais recorridos, no exercício do juízo de admissibilidade previsto no artigo no artigo 1.030, inciso V, do CPC/2015, examinarem a procedência das alegações de ofensa à Constituição produzidas no recurso extraordinário.


[1] “Não obstante a técnica peculiar (e imprópria) usada pelo legislador constituinte, ao redigir a letra a do art. 102, n.º III, e os dispositivos correspondentes em Constituições anteriores (cf. supra, o comentário n 319 ao art. 541), o julgamento dos recursos nela fundados há de obedecer à mesma sistemática, sem desprezar a distinção entre as duas etapas. É inadequada a maneira por que o Supremo Tribunal Federal costuma pronunciar-se acerca desses recursos, dizendo que deles ‘não conhece’ quando entende inexistir alegada infração. Desde que se examine a federal question suscitada pelo recorrente, isso significa que se julga o recurso de meritis, pouco importando que se acolha ou se repila a impugnação feita à decisão recorrida; em casos tais, o que se deve dizer é que se conheceu do recurso e, respectivamente, que se lhe deu provimento”.

[2] “RE adesivo: admissibilidade quando não conhecido o RE principal. Não obsta, em princípio, à admissão do RE adesivo, que o recurso extraordinário ou especial principal, interposto pela letra a, segundo a terminologia do STF, não seja conhecido, porque se repute inexistente a contrariedade à Constituição ou à lei federal, conforme o caso. Precedentes: RE 87.355, RTJ 95/210; RE 102.308, RT 611/245” (RE 196.240, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 09/09/1997).

[3] Nelson Luiz Pinto, Recurso Especial para o STJ, São Paulo, Malheiros, 1996, p. 118/120.

[4] Nesse julgamento, fica claro que as críticas do Professor Barbosa Moreira foram decisivas para que o STF alterasse a sua orientação jurisprudencial.

[5] “Recurso extraordinário: letra a: alteração da tradicional orientação jurisprudencial do STF, segundo a qual só se conhece do RE, a, se for para dar-lhe provimento: distinção necessária entre o juízo de admissibilidade do RE, a– para o qual é suficiente que o recorrente alegue adequadamente a contrariedade pelo acórdão recorrido de dispositivos da Constituição nele prequestionados – e o juízo de mérito, que envolve a verificação da compatibilidade ou não entre a decisão recorrida e a Constituição, ainda que sob prisma diverso daquele em que se hajam baseado o Tribunal a quo e o recurso extraordinário”.

[6] “Não compete ao presidente ou ao vice-presidente examinar o mérito do recurso extraordinário ou especial, nem lhe é lícito indeferi-lo por entender que o recorrente não tem razão. Estaria, ao fazê-lo, usurpando a competência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça”.

[7] “O juízo prévio de admissibilidade de recursos dirigidos a este Supremo Tribunal Federal deve ser feito pelos Tribunais de origem, sem que isso implique usurpação de competência desta Corte.” (Emb. Decl. no AI 815.975, Relator Min. Dias Toffoli, DJe de 21/08/2012).

fonte: https://www.conjur.com.br/2016-dez-14/confusao-entre-admissibilidade-merito-recursos-extraordinarios