A Importância do Sistema de Controle Externo para a Democracia
TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO
CONGRESSO DE DIREITO ECONÔMICO
A IMPORTÂNCIA DO SISTEMA DE CONTROLE EXTERNO PARA A DEMOCRACIA*
Carlos Mário da Silva Velloso*
SUMÁRIO: I. Introdução. II. A Ética na Administração Pública. II.1. A transparência: o caráter público dos atos da administração. II.2. Instrumentos de controle e transparência. II.3. O controle da Administração Pública. II.3.1. O controle administrativo ou autocontrole. II.3.2. O controle legislativo. II.3.3. O controle judicial. II.3.3.1. Medidas judiciais adotadas no controle judicial. II.3.4. O Ministério Público. III. A Ética na política. IV. Conclusão.
- Introdução
O controle deve ser posto, de forma abrangente, sob o ponto de vista da ética na Administração Pública, incluída a ética na política, dado que cargos políticos, assumidos por políticos, de regra, são cargos que influem na Administração, quando não são os próprios dirigentes. É dizer, o bem proceder em termos republicanos dos agentes públicos e dos agentes políticos, todos submetidos ao controle, constitui tête de chapitre das garantias da democracia.
É que o povo, titular do poder, tem direito a uma administração pública honesta, justa. Invariavelmente, interesses privados, interesses de pessoas de direito privado conflitam com interesses públicos. No que diz respeito à corrupção de agentes públicos, não há esquecer a figura do agente corruptor, de regra, uma pessoa jurídica de direito privado, que agiu contrariamente à lei e, sobretudo, à ética. A exigência da ética nas entidades privadas é, portanto, de relevância.
O controle, sob a ótica da ética na administração pública, tem natureza de direito fundamental, mesmo porque a obrigação de bem administrar não constitui apenas uma obrigação administrativa. Bem administrar é também uma obrigação jurídica. Decorre daí o direito do cidadão a uma administração honesta, o que é reconhecido pelo direito administrativo moderno.
Observe-se que direitos fundamentais, no constitucionalismo brasileiro, não são somente os escritos ou expressos na Constituição. O art. 5º, §2º, dispõe: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios constitucionais por ela adotados, dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Temos o controle, portanto, como um direito fundamental dos cidadãos.
- A Ética na Administração Pública
II.1. A transparência: o caráter público dos atos da administração
Nos Estados democráticos de direito, os atos da Administração Pública têm caráter público. A transparência dos atos da Administração é característica do regime democrático, pelo que esses atos são submetidos ao princípio da publicidade. A Constituição Federal consagra esse princípio e mais o da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da eficiência (C.F., art. 37).
E porque a Constituição deseja que o cidadão fiscalize o poder público, estabelece mais que (i) é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional (C.F., art. 5º, XIV); (ii) todos têm o direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (C.F., art. 5º, XXXIII); (iii) a todos é assegurado, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, e a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal (C.F., art. 5º, XXXIV, “a” e “b”); (iv) conceder-se-á habeas data para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do indivíduo, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público e para a retificação de dados quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo; (v) qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural (C.F., art. 5º, LXXIII); (vi) qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União (C.F., art. 74, §2º). Estas disposições, em razão do princípio da simetria e tendo em vista o disposto no art. 75 da Constituição, se estendem aos Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios.
II.2. Instrumentos de controle e transparência
A Lei 4.320, de 1964, que estabelece normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a Lei 8.666, de 1993,1 que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública, a Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº 101, de 2000, e a Lei Complementar nº 131, de 2009, que acrescentou dispositivos à Lei Complementar nº 101, de 2000, estabelecendo que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios divulguem, em tempo real e na internet, informações detalhadas sobre a execução orçamentária e financeira, constituem notáveis instrumentos de controle e transparência da ação governamental, realizando o que os povos de língua inglesa denominam de accountability, que Vinicius Fernandes Moreira, em artigo de doutrina, conceitua como sendo “a obrigação dos administradores públicos de dar conhecimento à sociedade acerca das iniciativas insertas nas políticas públicas, mediante informação sobre seus aspectos procedimentais, sobre os custos e benefícios delas advindos e sobre os resultados alcançados, aliada à de assunção de responsabilidade pela adoção de tal política e pela eficiência na administração de recursos públicos.”2 Accountability, em suma, seria a obrigação dos administradores públicos de prestar contas de seus atos a órgãos de controle, nestes incluídos os representados, é dizer, os cidadãos, o povo, principalmente no que diz com os gastos do dinheiro público. Accountability diz respeito, também e, em consequência, à responsabilização dos dirigentes públicos pelo exercício irregular de suas funções.
Preceitua a Constituição, ademais, que a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizam promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos (C.F., art. 37, §1º).
Quanto a esse tema – publicidade de programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos – convém registrar que as diversas administrações, federal, estadual e municipal, manejam enormes verbas para publicidade que, invariavelmente, revela-se enganosa, com finalidade eleitoral.
No amplo leque de normas que têm por finalidade fazer transparente a Administração Pública, e que requisitam a participação do cidadão na fiscalização dos atos da Administração, estatui a Constituição que a lei disciplinará as formas de participação do usuário na Administração Pública direta e indireta, regulando, especialmente, (i) as reclamações relativas às prestações dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços, (ii) o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII, linhas atrás referidos, (iii) a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública.
O acesso dos cidadãos à informação a respeito dos atos dos administradores públicos constitui movimento mundial. Pesquisa da UNESCO revela que mais de 140 países já adotam ou estão em processo de adoção de lei de acesso à informação. No Brasil, a Lei 12.527, de 18.11.2011, com vigência a partir de 16.05.2012, com alterações da Lei 14.345, de 2022, regula o acesso a informações previsto nos artigos 5º, XXXIII, 37, II e 216, §2º, da Constituição.
A Constituição de 1988, uma Constituição democrática, deseja que o cidadão se conscientize de que ele é o titular do poder-dever de fiscalizar a coisa pública, tornando efetiva a gestão participativa. Nesse sentido, cresce de importância a existência de entidades da sociedade civil com a finalidade de fiscalizar o poder público. As associações, que têm caráter de impessoalidade, atuam melhor e com mais liberdade do que o cidadão, solitariamente.
II.3. O controle da Administração Pública
O controle da ação governamental, ou da Administração Pública, é realizado de três formas: (1) pelo controle administrativo, ou autocontrole; (2) pelo controle legislativo, feito pelo Poder Legislativo, que pode ser classificado de dois modos: (2.1) controle político e (2.2) controle financeiro (C.F., art. 70); e (3) controle judicial.
II.3.1. O controle administrativo ou autocontrole
O controle administrativo, ou autocontrole, é feito pelos órgãos da Administração. No ponto, convém registrar que também os Poderes Legislativo e Judiciário praticam atos administrativos, pelo que realizam, também, o autocontrole.
O Supremo Tribunal Federal estabeleceu, na Súmula 346, que “a Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.” Essa Súmula, entretanto, deve ser interpretada em consonância com a Súmula 473, a dizer que “a Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”
A anulação do ato administrativo, pela própria Administração, ocorrerá quando o ato estiver eivado de vício, ou seja, for ilegal. A revogação ocorrerá com base em dois motivos: (i) inconveniência ou (ii) oportunidade. Serão respeitados os direitos adquiridos. E, em qualquer caso, seja a anulação, seja a revogação, é garantido o controle judicial.
O autocontrole administrativo far-se-á, sobretudo, pelos instrumentos de controle interno da Administração, na forma estabelecida na Constituição, art. 70 e seu parágrafo único e art. 74.
Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária (C.F., art. 74, § 1º). No ponto, devem participar os cidadãos, os partidos políticos, as associações ou sindicatos, que podem denunciar irregularidades ou ilegalidades ao Tribunal de Contas da União (art. 74, § 2º).
II.3.2. O controle legislativo
O controle legislativo é feito pelo Poder Legislativo sobre os atos da Administração. Tem-se, no caso, o denominado controle externo, que é feito pelo Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas da União (C.F., art. 70 e 71, I).
O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União (C.F., art. 71, I a XI), competindo a este, em primeiro lugar, o controle político: apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio, que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento. Esse parecer seguirá para o Congresso Nacional, responsável maior pelo controle político da Administração (C.F., art. 71, I). É dizer, o parecer prévio, elaborado pelo TCU, sobre as contas prestadas pelo Presidente da República, será apreciado pelo Congresso Nacional.
Segue-se a segunda parte do controle externo da Administração, que não tem caráter político, não obstante incluir-se no controle legislativo. É que, no ponto, a Constituição confere ao Tribunal de Contas competência para julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário (C.F., art. 71, II).
Anote-se que prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assume obrigações de natureza pecuniária (C.F., art. 70, parágrafo único). É dizer, onde houver dinheiro público, lá deverá estar, fiscalizando, tomando as contas, o Tribunal de Contas. É oportuno registrar que a rejeição de contas de prefeitos municipais, pelos Tribunais de Contas, agindo os prefeitos como ordenadores de despesas, não está sujeita, essa rejeição, à apreciação das Câmaras Municipais.
As competências enumeradas no art. 71, incisos III a XI, da Constituição, são também próprias do Tribunal de Contas da União, que as exercem sem necessidade de serem submetidas à apreciação do Congresso Nacional. Mas deve o Tribunal de Contas encaminhar ao Congresso, trimestral e anualmente, relatório de suas atividades (C.F., art. 71, § 4º).
É relevante o controle externo da administração. O Supremo Tribunal tem apreciado, devidamente provocado, decisões do Tribunal de Contas. Por exemplo:
“inexiste direito líquido e certo de obstar atividade de apuração de fatos ilícitos ou exame de legalidade, desenvolvida pelo TCU no exercício da competência constitucional de controle externo”, aplicando-se, entretanto, a norma inscrita no art. 54 da Lei 9.784/1999: prazo prescricional de cinco anos (MS 39.208-AgR).
“No âmbito da tomada de contas especial, é possível a condenação administrativa de Chefes dos Poderes Executivos municipais, estaduais e distrital pelos Tribunais de Contas, quando identificada a responsabilidade pessoal em face de irregularidades no cumprimento de convênios interfederativos de repasse de verbas, sem necessidade de posterior julgamento ou aprovação do ato pelo respectivo Poder Legislativo” (ARE 1436197/RS).
“É inconstitucional lei estadual de iniciativa parlamentar que, ao conceder descontos vultuosos em multas aplicadas por tribunal de contas, interfere no poder sancionador inerente ao controle externo da Administração Pública, com prejuízo aos princípios da moralidade administrativa, da eficiência e da probidade” (ADI 6846, Tese de julgamento).
Na ausência de regra expressa para o modelo federal, têm os Estados competência para suplementar o modelo constitucional de controle externo. O STF consolidou a interpretação do alcance da cláusula constitucional da imprescritibilidade no modelo federal como limitada aos “atos dolosos de improbidade administrativa.” “É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas: RE 636.866 (ADI 5509). “Súmula 347 do STF: compatibilidade com a ordem constitucional de 1988: o verbete confere aos Tribunais de Contas – caso imprescindível para o exercício do controle externo – a possibilidade de afastar (incidenter tantum) normas cuja aplicação no caso expressaria um resultado inconstitucional (seja por violação patente da Constituição ou por contrariedade à jurisprudência do STF sobre a matéria)”. Todavia, foi reafirmada a jurisprudência quanto à inviabilidade de realização de controle abstrato de constitucionalidade por parte de tribunais de contas (MS 25.888 AgR). O controle abstrato, ou o controle concentrado é de competência exclusiva do Supremo Tribunal. O Tribunal de Contas faz controle difuso de constitucionalidade, faculdade concedida a todo juiz ou tribunal. No caso, o Tribunal de Contas investe-se, por decisão do Supremo Tribunal, de prerrogativa própria do Judiciário.
Operações creditícias que envolvam recursos públicos não estão abarcadas pelo sigilo bancário, sendo, em tais casos, possível que órgãos de controle solicitem os dados de tomadores dos créditos, de modo a conferir transparência à movimentação financeira, ao menos até o depósito nas contas particulares. No tocante ao sigilo empresarial, a questão resolve-se pelo compartilhamento dos dados com o TCU, solução que decorre da própria necessidade de conferir máxima efetividade a distintos vetores constitucionais – de um lado o que impõe, tanto quanto possível, paridade de tratamento entre empresas estatais exploradoras de atividade econômica e empresas privadas, e de outro, os que estabelecem os deveres constitucionais de publicidade, transparência e prestação de contas, observados os artigos 85 a 88 da Lei 13.303/2016 (MS 23.168/AgR).
No complexo feixe de atribuições fixadas ao controle externo, a competência desempenhada pelo Tribunal de Contas não é, necessariamente, de mero auxiliar do poder legislativo. Tese: “A competência técnica do Tribunal de Contas do Estado, ao negar registro de admissão de pessoal, não se subordina à revisão do Poder Legislativo respectivo.” (RE 576.920).
II.3.3. O controle judicial
A Constituição estabelece o princípio da inafastabilidade do controle judicial sobre quaisquer atos, estatuindo que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (C.F., art. 5º, XXXV). E consagra a Constituição os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência (C.F., art. 37). Para o fim de assegurar a observância do mérito no ingresso no serviço público, deixa expresso, art. 37, II, que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.”
Estabelece a Constituição que as funções de confiança serão exercidas, exclusivamente, por servidores ocupantes de cargo efetivo (C.F., art. 37, V). E mais: os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento (C.F., art. 37, V). Estatui a Constituição, ademais, que a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (C.F., art. 37, IX). A contratação por tempo determinado, sem concurso público, somente ocorrerá, está-se a ver, (i) nos casos estabelecidos em lei, (ii) para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público.
A Constituição, tratando-se de ingresso no serviço público, foi minuciosa. Somente a aprovação em concurso público de provas, ou de provas e títulos, faz legítima a investidura. Funções de confiança somente podem ser destinadas a servidores ocupantes de cargo efetivo; e os cargos em comissão devem ser preenchidos: a) por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais previstos em lei, b) destinando-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento.
A terceirização de funções públicas, exercida de forma ampla, representa fraude à Constituição. Vagas de servidores no serviço público devem ser preenchidas por concurso público, cumprindo aos Tribunais de Contas apreciar a legalidade de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo poder público (CF, art. 71, III).
Assinala a Constituição, ainda, que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.” (C.F., art. 37, § 4º).
A improbidade administrativa constitui imoralidade administrativa. A Constituição consagra o princípio da moralidade administrativa (C.F., art. 37). A improbidade administrativa seria, então, “uma imoralidade qualificada”, “uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem.”3
II.3.3.1. Medidas judiciais adotadas no controle judicial
Os atos da Administração Pública violadores dos princípios constitucionais inscritos no art. 37 da Constituição, os atos de improbidade administrativa, e bem assim os atos da administração que violem direitos subjetivos sujeitam-se ao controle judicial. Quanto a estes últimos, há um rol de medidas judiciais que podem ser adotadas, como, por exemplo, além das ações ordinárias, o mandado de segurança. E os atos lesivos ao patrimônio público, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural e à moralidade administrativa poderão ser objeto da ação popular, cabendo ao cidadão a legitimação para o seu ajuizamento (C.F., art. 5º, LXXIII; Lei 4.717/1965).
A ação civil pública, disciplinada pela Lei 7.347, de 1985, constitui, também, “instrumento processual adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 1º), protegendo assim os interesses difusos da sociedade. Não se presta a amparar direitos individuais, nem se destina à reparação de prejuízos causados a particulares pela conduta, comissiva ou omissiva, do réu.”4
Interessa-nos, de modo especial, a ação de improbidade administrativa regida pela Lei 8.429, de 1992,5 que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional. A citada Lei 8.429/92 é instrumento de realização do princípio constitucional da moralidade administrativa, dado que, conforme foi dito, a improbidade administrativa constitui imoralidade administrativa qualificada.
A Lei 8.429, de 1992, com as alterações da Lei 14.230/2021, estabelece três tipos de atos de improbidade: (i) os atos que importam enriquecimento ilícito (art. 9º); (ii) os atos que causam lesão ao patrimônio público (art. 10); (iii) os atos que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11).
A jurisprudência tem sido no sentido de exigir-se, no que toca às condutas dos artigos 9º e 11, a existência de dolo. Relativamente ao artigo 10, a conduta deveria ser pelo menos culposa, com necessidade de o dano ao erário ser comprovado. A conduta culposa ocorreria no não pretender o agente público atingir o resultado danoso, mas atuar com negligência, imprudência ou imperícia.
A improbidade administrativa culposa, inscrita nos artigos 5º e 10 da Lei 8.429, de 1992, foi extinta pela Lei 14.230, de 2021. Desta forma – o que já vinha sendo decidido pelo Judiciário – não há improbidade administrativa sem dolo. Isso foi bom? Penso que não. O legislador deveria ter deixado por conta da Justiça, que já vinha decidindo com observância das circunstâncias de cada caso. A jurisprudência já deixara claro, conforme foi dito, que a conduta culposa ocorreria no não pretender o agente público atingir o resultado danoso, mas atuar com negligência, imprudência ou imperícia. Em qualquer administração séria, não pode e não deve o administrador agir com culpa stricto sensu, isto é, administrar com negligência, imprudência ou imperícia. Pode haver casos em que a negligência, a imprudência ou a imperícia visa a beneficiar alguém.
Qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa competente para que seja instaurada investigação destinada a apurar a prática de ato de improbidade (Lei 8.429/92, art. 14). A ação principal será requerida pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada (art. 17) e, para apurar qualquer ilícito previsto na citada Lei 8.429/92, o Ministério Público, de ofício, a requerimento de autoridade administrativa ou mediante representação formulada por qualquer pessoa, poderá requisitar a instauração de inquérito policial ou procedimento administrativo (art.22).
Está-se a ver que são várias as medidas judiciais que podem ser adotadas em defesa da moralidade administrativa, em favor da ética na Administração Pública.
II.3.4. O Ministério Público
No ponto, vale mencionar a relevância do papel do Ministério Público para a realização do controle judicial da Administração. Na verdade, sem o Ministério Público, esse controle muito pouco se realizaria. O Ministério Público é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (C.F., art. 127) e a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. (C.F., art. 129, III). Cumpre ao Ministério Público, ademais, a fiscalização do processo eleitoral, é ele titular da ação penal tem participação efetiva junto aos Tribunais de Contas.
III. A Ética na política
O que se disse relativamente à Ética na Administração Pública aplica-se à política. Convém registrar que, de há muito, a sociedade, que tem fome e sede de moralidade, empenha-se no combate à corrupção na política, pugnando por tornar cada vez mais legítima a representação. O processo eleitoral vem sendo aperfeiçoado. O voto eletrônico, implantado em 1995, pelo Tribunal Superior Eleitoral e utilizado, pela primeira vez, nas eleições de 1996, afastando a mão humana da captação, apuração e da totalização dos votos, eliminou a praga das fraudes, principalmente a denominada “mapismo”, que elegia ou “deselegia” candidatos.
A Lei das Eleições, Lei 9.504, de 1997, vem sendo aperfeiçoada. Merece registro o seu artigo 41-A, que pune severamente a compra do voto, introduzido pela Lei 9.840, de 28.09.1999, lei de iniciativa popular. A compra do voto se caracteriza quando o candidato doa, oferece, promete, ou entrega ao eleitor, para obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive. Isso ocorrendo, o candidato terá cassado o registro ou o diploma, sem necessidade do exame da potencialidade do voto obtido ou que se tentou obter. Basta a compra ou a obtenção de um voto. O candidato que compra o voto e o eleitor que vende o seu voto cometem crime eleitoral. É dizer, a conduta é criminosa.
A citada Lei 9.504, de 1997, conceitua, no art. 73, condutas vedadas aos agentes públicos nas eleições. A prática de tais condutas caracteriza, também, o ato de improbidade administrativa a que se refere o artigo 11, inciso I, da Lei 8.429/92, com sujeição, especialmente, às cominações do art. 12, III (art. 73, § 7º). No ponto, cuida-se de proteger a lisura dos pleitos, afastando-se o uso perverso da máquina administrativa em favor de candidato.
A Lei das Inelegibilidades, Lei Complementar nº 64, de 1990, foi significativamente alterada, melhor dizendo, aperfeiçoada, com edição da Lei Complementar nº 135, de 2010, a denominada “lei da ficha limpa.” Também a Lei Complementar nº 135 foi de iniciativa legislativa popular.
- Conclusão
Posta a matéria de forma abrangente, sob a ótica da ética na Administração, e tendo em consideração que o ato administrativo constitui uma obrigação não somente administrativa, mas também jurídica, e que os cidadãos, os indivíduos de modo geral, têm direito a uma administração honesta, assume o controle caráter de direito fundamental. Assim, sobe de importância o controle externo da administração pública, garantidor do proceder de forma republicana dos agentes públicos, desta forma garantia da democracia.
Nesse quadro, relevante a atuação dos Tribunais de Contas, partícipe no fazer o controle uma garantia da democracia.
Referências
* Texto básico de palestra proferida no IV Congresso Internacional de Direito Financeiro e Econômico, no Tribunal de Contas do Estado de S. Paulo, palestra de encerramento do Congresso, sob a presidência da Conselheira Cristiana de Castro Moraes, no dia 26/08/2025,
** Ministro aposentado, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e da PUC/MG, em cujas Faculdades de Direito foi professor titular de Teoria Geral do Direito Público e Direito Constitucional. Foi professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG e de Direito Constitucional Tributário no IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público. Advogado, sócio da Advocacia Velloso.
Notas de Rodapé
[1] A Lei 8.666, de 1993, foi revogada pela Lei de Licitações e Contratos, Lei 14.133/2021, a partir de 2024. Embora revogada, continua a reger os contratos assinados sob sua égide até o fim da vigência destes.
2 Moreira, Vinicius Fernandes, “A efetividade dos principais instrumentos legais de controle sobre a ação governamental sob a ótica da democracia”, Fundação João Pinheiro, 2003.
3 Afonso da Silva, José, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros, 24ª edição, ps. 668-669.
4 Meirelles, Hely Lopes, “Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública,.”, Malheiros, 28ª edição, 2005, ps. 169-170.
5 A Lei 14.230, de 2021, alterou sensivelmente a Lei 8.429, de 1992.
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